Precedente, efeito vinculante e coisa julgada
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William Akerman[1] e Priscila Machado[2]
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Na quadra atual, a compreensão exata de cada um dos conceitos aqui abordados mostra-se indispensável à atuação de qualquer operador do Direito.
A partir da noção de precedente, abordam-se as funções interna e externa da ratio decidendi, bem assim a diferenciação em relação ao conceito, elaborado de forma negativa, de obiter dictum.
Assentadas tais premissas, expõem-se o real significado de efeito vinculante, confrontando o precedente com a coisa julgada, considerados os limites subjetivos de cada qual.
Emergem, a seguir, os instrumentos de controle do precedente e os instrumentos de controle de sua aplicação, contrapondo-se, de um lado, overrulling, overriding, transformation e sinaling e, de outro, distinguishing, intervenção de amicus curiae, dever de publicidade, realização de audiência pública, embargos de declaração, agravo interno e, ainda que, por vezes, ostente função integrativa, a reclamação. O tema merece estudo atento.
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Precedente, nas palavras de Didier, “é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto[3], cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”[4].
Na mesma direção colhem-se as lições de Araken de Assis, destacando já aqui que nem todo precedente é vinculante:
“Precedente é, portanto, a decisão judicial sobre questão de direito, assentada em determinado esquema de fato, que fornece e a regula iuris para outros julgamentos. Nem todo precedente vincula necessariamente (binding precedent). Tampouco incorpora-se inelutavelmente à súmula da jurisprudência dominante. Em geral, o precedente tem caráter persuasivo (persuasive precedent): o acatamento da tese jurídica prende-se mais à consciência do magistrado, persuadido em seguir a linha jurisprudencial do tribunal em proveito da segurança jurídica, isonomia, confiança e – dado nada desprezível – da intrínseca facilidade de julgar mediante sua aplicação”[5].
Ainda nesse sentido, a título de reforço, Marinoni aduz que “é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina”[6].
Com orientação um pouco diversa, mas por se tratar de conhecido autor, cita-se, ainda, a definição de Daniel Assumpção, para quem “precedente é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de um outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido”[7].
Ainda sobre o conceito de precedente, deve-se notar que, como já parece claro, nem toda decisão judicial consubstancia um precedente[8]. Marinoni aponta que:
“Portanto, uma decisão pode não ter os caracteres necessários à configuração de precedente, por não tratar questão de direito ou se limitar a afirmar a letra da lei, como pode estar apenas reafirmando o precedente. Outrossim, um precedente requer a análise dos principais argumentos pertinentes à questão de direito, além de poder necessitar de inúmeras decisões para ser definitivamente delineado”[9].
Demais disso, Fredie Didier disseca o precedente, indicando que é composto pelas: a) circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; b) tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório; c) argumentação jurídica em torno da questão.
Assim, segundo o autor, “embora comumente se faça referência à eficácia obrigatória ou persuasiva do precedente, deve-se entender que o que pode ter caráter obrigatório ou persuasivo é a sua ratio decidendi”[10], que constitui tão somente um dos elementos que compõem o precedente.
Em verdade, para Didier, o precedente, em sentido estrito, pode ser definido como sendo a própria ratio decidendi[11].
E prossegue o renomado processualista, assentando que:
“A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão[12]; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi”[13].
Nesse ponto, deve-se observar que o julgador, ao analisar o caso concreto, cria ou reconstrói necessariamente duas normas jurídicas. A primeira, de caráter geral, é fruto da sua interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua conformação ao Direito positivo. A segunda, de caráter individual, constitui a sua decisão para aquela situação específica que se lhe põe para a análise[14].
Em outros termos, “a ratio decidendi constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law)”[15] e a norma jurídica geral, que construída por um órgão jurisdicional, a partir de um caso concreto, pode servir como diretriz no julgamento de demandas semelhantes.
De sorte a ilustrar o que aqui se destaca, Didier fornece o seguinte exemplo:
“O art. 700 do CPC permite o ajuizamento de ação monitória a quem disponha de ‘prova escrita’ que não tenha eficácia de título executivo. ‘Prova escrita’ é termo vago. O STJ decidiu que ‘cheque prescrito’ (n. 299 da súmula do STJ) e ‘contrato de abertura de conta-corrente acompanhado de extrato bancário’ (n. 247 da súmula do STJ) são exemplos de prova escrita. A partir de casos concretos, criou ‘duas normas gerais’ à luz do Direito positivo, que podem ser aplicadas em diversas outras situações, tanto que se transformaram em enunciado da súmula daquele Tribunal Superior. Note que a formulação desses enunciados sumulados não possui qualquer conceito vago, não dando margem a muitas dúvidas quanto à sua incidência. Como se percebe, à luz de uma situação concreta, o julgador termina por criar uma norma que consubstancia a tese jurídica a ser adotada naquele caso –por exemplo, ‘cheque prescrito’ se enquadra no conceito de ‘prova escrita’ de que fala o art. 700 do CPC. Essa tese jurídica é o que chamamos de ratio decidendi. Ela decorre da fundamentação do julgado, porque é com base nela que o juiz chegará, no dispositivo, a uma conclusão acerca da questão em juízo. Trata-se de norma geral, malgrado construída, mediante raciocínio indutivo, a partir de uma situação concreta. Geral porque a tese jurídica (ratio decidendi) se desprende do caso específico e pode ser aplicada em outras situações concretas que se assemelhem àquela em que foi originalmente construída”[16].
Desse conceito de ratio decidendi decorre a dupla função por ela exercida: a primeira é interna, e a segunda, externa.
A função interna da ratio decidendi se revela na medida em que a norma jurídica geral, localizada principalmente na fundamentação da decisão, serve de fio condutor à norma jurídica individual, constante de seu dispositivo, que rege determinado caso.
Já a função externa da ratio decidendi se prende à potencialidade de a norma jurídica geral se desprender do caso específico no âmbito do qual foi construída e ser aplicada em outras situações concretas que se assemelham àquela em que foi originariamente formulada. A ratio decidendi, considerada em sua função externa, é o elemento do precedente judicial que tem aptidão para ser universalizado, razão pela qual pode operar vinculação[17].
Afora a noção de ratio decidendi, outro conceito se revela igualmente importante na delimitação do precedente: o obiter dictum (obiter dicta, no plural), ou simplesmente dictum[18], que é o argumento jurídico, consideração, comentário exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo normativo acessório, provisório, secundário, impressão ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão, ou seja, prescindível para o deslinde da controvérsia[19].
Trata-se de colocação ou opinião jurídica adicional, paralela e dispensável para a fundamentação e conclusão da decisão. É mencionada pelo juiz “incidentalmente” ou “a propósito” (“by the way”), mas pode representar um suporte ainda que não essencial e prescindível para a construção da motivação e do raciocínio ali exposto[20].
Normalmente é definido de forma negativa: é obiter dictum a proposição ou regra jurídica que não compuser a ratio decidendi[21]. Assim:
“o exemplo mais visível de utilização de um dictum é quando o tribunal de forma gratuita sugere como resolveria uma questão conexa ou relacionada com a questão dos autos, mas que no momento não está resolvendo”[22].
Assentadas tais noções, foi observado que, por ocasião da conceituação do precedente, não raro, se atrela a noção de precedente ao seu eventual caráter vinculante.
Todavia, como é consabido, a eficácia jurídica de um precedente variará de acordo com as disposições do direito positivo de cada país e, no direito brasileiro, os precedentes judiciais têm aptidão para produzir diversos efeitos jurídicos, que não se excluem.
É possível e até comum que um mesmo precedente produza mais de um tipo de efeito, já que o efeito persuasivo, que é o efeito retórico, está presente em qualquer precedente.
Como todo precedente serve para se buscar convencer o juiz, o efeito persuasivo constitui a eficácia mínima de todo precedente.
Ainda nas palavras do citado processualista baiano, há um rol com ao menos seis tipos de efeitos jurídicos que um precedente pode vir a atingir no Brasil:
Ainda nesse contexto, o art. 927 do CPC traz os precedentes obrigatórios, que não esgota, como visto, a noção de precedente.
A fim de não deixar dúvida, como o próprio nome sugere, diz-se que o precedente é vinculante/obrigatório (binding precedent), ou dotado de binding authority (autoridade vinculante), quando tiver eficácia vinculativa em relação aos casos que, em situações análogas, lhe forem supervenientes.
Pela sua importância, embora não limite a noção de precedente, transcreve-se o dispositivo, inserindo breves comentários acerca de cada um dos seus incisos:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão[24]:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade[25]–[26];
II – os enunciados de súmula vinculante[27];
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos[28];
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional[29]–[30];
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados[31]–[32].
Ao falar em efeito vinculante do precedente, deve-se ter em mente que, em certas situações, a norma jurídica geral (tese jurídica, ratio decidendi) estabelecida na fundamentação de determinadas decisões judiciais tem o condão de vincular decisões posteriores, obrigando que os órgãos jurisdicionais adotem aquela mesma tese jurídica na sua própria fundamentação[33].
Todavia, por tudo que se expôs, não há como partir de eventual efeito vinculante, ou mesmo dos casos em que tais efeitos estão previstos em lei, para se definir precedente.
De outro giro, no que toca aos seus limites subjetivos, se o precedente é marcado pela aptidão de universalização, é natural que seus limites subjetivos não estejam adstritos às partes da demanda.
Como visto, a norma individual, enunciada no dispositivo e editada para o caso concreto, decorre dos fundamentos determinantes e, portanto, da norma geral, constante da fundamentação.
E essa norma constante da fundamentação, como é intuitivo, exatamente por sua generalidade, transcende as partes e ostenta eficácia erga omnes. Em síntese, o precedente pode ser utilizado por quem quer que seja.
Aqui, uma observação também se faz necessária. A eficácia aqui apontada não está apenas naqueles precedentes obrigatórios. Neles, todavia, resta ainda mais evidente a eficácia erga omnes.
O que não se pode confundir é o efeito vinculante do precedente com o efeito vinculante que, em determinadas hipóteses, decorre da coisa julgada.
De modo a reforçar a diferenciação, recordamos que as decisões proferidas pelo STF em ações de controle concentrado de constitucionalidade têm efeito vinculante em relação aos demais órgãos jurisdicionais do país e à administração pública direta e indireta, na esfera federal, estadual, municipal (art. 102, §2º, CF, art. 28, parágrafo único, Lei nº 9.868/99 e art. 10, §3º, Lei nº 9.882/99).
Mas essa vinculação decorre do fato de que, nessas hipóteses, a própria coisa julgada é erga omnes por expressa disposição legal.
Por conta disso, o Poder Público está vinculado à norma jurídica estabelecida, pelo STF no dispositivo da decisão que resolve ação de controle concentrado de constitucionalidade.
O que se discute na sistemática dos precedentes, diversamente, é a possibilidade de haver vinculação, também, à ratio decidendi desse julgado (inciso I do art. 927 do CPC)[34]:
“Observe-se este exemplo: no julgamento de uma ADI, o STF entende que uma lei estadual (nº 1000/2007, p. ex.) é inconstitucional por invadir matéria de competência de lei federal. A coisa julgada vincula todos à seguinte decisão: a lei estadual nº 1000/2007 é inconstitucional; a eficácia do precedente recai sobre a seguinte ratio decidendi: ‘lei estadual não pode versar sobre determinada matéria, que é de competência de lei federal’”[35].
Então, no exemplo, por força da coisa julgada e dos seus efeitos erga omnes no caso de controle abstrato, a lei estadual nº 1000/2007 restará expurgada do ordenamento jurídico, já que se adota, entre nós, a teoria da nulidade em tema de controle de constitucionalidade.
Mas não é disso que trata o art. 927, I, do CPC, que estatui o respeito ao precedente, que, como visto, tem aquela aptidão de universalização, e não à coisa julgada.
O precedente a ser observado no exemplo tem a seguinte repercussão: se for editada outra lei estadual (lei nº 2999/2016), em outro Estado, sobre a mesma matéria que, nesse precedente, foi considerada de competência legislativa federal, e não de competência legislativa estadual, pelo Supremo Tribunal Federal, arguida a sua inconstitucionalidade, mesmo em sede de controle difuso, deverá ser considerada inconstitucional a lei nº 2999/2016, observando-se esse precedente obrigatório do STF sobre o tema, formado ao julgar a constitucionalidade da lei estadual nº 1000/2007.
Aqui está o respeito ao precedente, que, frise-se, não se confunde com a coisa julgada.
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Por fim, quanto aos instrumentos de controle preventivo e repressivo do PRECEDENTE, não se confundem com os instrumentos de controle da aplicação do precedente, ou seja, das decisões judiciais que aplicam o precedente, e não do precedente em si, no que diz respeito à sua formação e à sua subsistência.
Dá-se o distinguishing[36]–[37] (ou distinguish) “quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente”[38].
Para Cruz e Tucci, o distinguishing é um método de confronto, “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma”[39].
Sendo assim, o termo “distinguish” possui duas acepções e pode ser empregado em duas situações:
(i) para designar o confronto entre a hipótese sob exame e o precedente, ou seja, o próprio método de comparação entre o caso concreto e o paradigma (distinguish – método) – como previsto no art. 489, §1º, V, e no art. 927, §1º, CPC; e
(ii) para designar o resultado desse confronto, nos casos em que se conclui haver entre eles alguma diferença (distinguish – resultado); é a chamada “distinção”, consagrada no art. 489, § 1º, VI, no art. 927, §1º, e no art. 1037, §9º, todos do CPC[40].
Aqui já é possível notar que a distinção não constitui juízo que viola, tampouco revoga o precedente. Diante da distinção, tão somente não se aplica a tese a um caso, exatamente em razão da sua particularidade, que a distingue do caso de que emergiu o precedente.
Por isso, embora fundamental à dinâmica atual, a distinção não constitui mecanismo de controle, seja preventivo, seja repressivo, do precedente em si, mas sim de sua aplicação.
Igualmente, os embargos de declaração opostos com fulcro no art. 1022, parágrafo único, I, do CPC, também constituem um mecanismo de controle da aplicação do precedente, assim como o agravo interno previsto no art. 1021 do CPC, que pode ser interposto contra a decisão de que cuida o art. 932, V, do CPC.
A reclamação (art. 988, IV, do CPC), além de outros já mencionados quando da abordagem dos efeitos dos precedentes, também constitui, em tese, instrumento mediante o qual sindicável a observância do precedente.
Todavia, o próprio Supremo Tribunal Federal já viável, mesmo em sede de reclamação, a superação de precedente obrigatório e até mesmo a definição de novas regras não estabelecidas em verbete vinculante[41], a indicar que o instrumento também possui função integrativa.
De outro lado, como destaca Didier, os mecanismos preventivos de controle do próprio precedente, que dizem respeito à sua formação de forma concentrada, são a intervenção do amicus curiae (art. 138, art. 950, §3º, e art. 1.038, I, todos do CPC), tal como a Defensoria Pública[42], a intervenção do MP (art. 982, III, do CPC), o dever de publicidade (art. 8º, art. 927, §5º, e art. 979, todos do CPC) e a realização de audiência pública (art. 983, §1º, e art. 1.038, II, ambos do CPC)[43].
De outro lado, os mecanismos repressivos de controle do precedente são a superação (overrulling) do precedente (art. 3º da Lei n. 11.417/2006, art. 927, §§2º a 4º, e art. 986 do CPC) e a sua superação parcial (overriding).
O overruling é a técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente.
O próprio tribunal que firmou o precedente pode abandoná-lo em julgamento futuro, caracterizando o overruling. Essa substituição pode ser:
(i) Expressa (express overruling), quando um tribunal resolve, expressamente, adotar uma nova orientação, abandonando anterior; ou
(ii) Tácita ou implícita (implied overruling), quando uma orientação é adotada em confronto com a posição anterior, embora sem expressa substituição desta última.
O implied overruling não é, porém, admitido no ordenamento brasileiro, tendo em vista a exigência de fundamentação adequada e específica para a superação de uma determinada orientação jurisprudencial (art. 927, §4º, do CPC). É preciso dialogar com o precedente anterior para que se realize o overruling.
O overruling pode ser, ainda, realizado de modo difuso, já que pode ocorrer em qualquer processo que, chegando ao tribunal, permita a superação do precedente anterior. E pode dar-se também de modo concentrado. Ex.: procedimento autônomo cujo objetivo é a revisão ou cancelamento de súmula vinculante (art. 3º da Lei n. 11.417/2006); e pedido de revisão da tese firmada em incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 986 do CPC).
Já o overriding ocorre quando o Tribunal apenas limita o âmbito de incidência de um precedente, em função da superveniência de uma regra ou princípio legal. Há aqui a superação parcial do precedente[44].
Além desses institutos, do cotidiano da experiência com os precedentes, há também que se fazer menção à transformation. Nas palavras da doutrina:
“Esta suposta técnica seria justificada nas hipóteses em que o tribunal ainda não se sente preparado para realizar a revogação, embora reconheça a inadequação do entendimento anterior. Então, de forma a ir preparando uma futura revogação, ele modifica o precedente, mas tenta disfarçar a mudança, realizando uma compatibilização que não é possível. Ocorre que a transformation apenas dificulta o trabalho dos outros tribunais e dos jurisdicionados que enfrentam uma complexa situação em que o tribunal modifica o precedente de forma incompatível com o anterior, mas mesmo assim tenta realizar a compatibilização”[45].
Ainda segundo Didier, tanto o implied overruling, como a transformation são técnicas que malferem o dever de coerência decorrente do art. 926 do CPC[46].
Fala-se também em sinaling[47], já que o Tribunal pode fazer o que se chama de julgamento alerta. Em casos tais, o Tribunal não supera, mas sinaliza que há uma tendência de isso acontecer. Tal aviso serve para quebrar a confiança legitima, de sorte a que não se possa mais dizer que o precedente é confiável.
Há, por fim, “a superação antecipada (antecipatory overruling), espécie de não-aplicação preventiva, por órgãos inferiores, do precedente firmado por Corte Superior, nos casos em que esta última, embora sem dizê-lo expressamente, indica uma alteração no seu posicionamento quanto ao precedente outrora firmado”[48].
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A fim de acentuar o contraste do precedente com a coisa julgada, bem como reforçar suas características, o quadro[49] a seguir ilustra, em conclusão, o que aqui se expôs.
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. Coisa julgada (regime geral – art. 503, caput, CPC) . |
. Coisa julgada (regime especial – Art. 503, § 1º, CPC) |
. Eficácia vinculativa do precedente judicial . |
. . . . Limite Objetivo . . |
. . Dispositivo da decisão (norma jurídica individualizada) |
. Solução dada à questão prejudicial expressa e incidentalmente resolvida na fundamentação . |
. . Ratio decidendi – norma jurídica geral (fundamentação da decisão) |
. . Limite Subjetivo . . |
. Inter partes, como regra (art. 506, CPC) |
. Inter partes, como regra (art. 506, CPC) . |
. . Erga omnes |
. . . . . . . . Instrumentos de controle . . |
. . . . Ação rescisória, querela nullitatis, desconstituição de sentença inconstitucional (arts. 525, §12, e 535, §5º, CPC) e a correção de erro material |
. . . . . . Os mesmos instrumentos de controle da coisa julgada sujeita ao regime geral |
. Preventivo: intervenção do amicus curiae antes da formação do precedente (ex. arts. 138; 950, § 3º; 983, § 1º; 1.038, I e II, CPC) . Repressivo: mecanismos de superação (overrulling) do precedente (ex. art. 3º, Lei n. 11.417/2006; arts. 927, §§2º a 4º, e 986, CPC) . |
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Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Assessor-Chefe de Ministro do Supremo Tribunal Federal no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ex-Assessor de Ministro no Supremo Tribunal Federal (STF). Membro da International Association of Constitutional Law (IACL/AIDC). Membro Consultor da Comissão Especial de Integração com os Tribunais Superiores do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Membro do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Professor da Escola Superior de Advocacia Nacional (ESA Nacional). Ex-Procurador do Estado do Paraná. Doutorando em Direito – Democracia, buen gobierno y protección multinivel de derechos – pela Universidade de Salamanca. Mestre em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Organizador e coautor dos livros “Manual de Atuação em Matéria Criminal perante o STJ e o STF”, “Controle Concentrado de Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal”, “Reclamação Constitucional no Supremo Tribunal Federal”, “Democracia, Eleições e Justiça Eleitoral: desafios e perspectivas” “Mandado de Segurança e Mandado de Injunção no Supremo Tribunal Federal”, “Justiça Penal Negociada”, “Reconhecimento de Pessoas: novo regramento sob enfoque constitucional” e “Novo Perfil de Atuação da Defensoria Pública”, todos da Editora Sobredireito. Organizador e coautor do livro “Pacote Anticrime: análise crítica à luz da Constituição Federal” e coautor das obras “Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal” e da “Coleção 80 anos do Código Penal”, todas da Editora Revista dos Tribunais. ↑
Advogada com atuação em Tribunais Superiores. Sócia do escritório PM Advocacia. Consultora Jurídica Empresarial. CEO do Curso Sobredireito e da Editora Sobredireito. Ex-Assessora de Gabinete no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Membro da Junta Eleitoral perante o Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Rio de Janeiro. Colaboradora no livro “Mandado de Segurança e Mandado de Injunção no Supremo Tribunal Federal” da Editora Juspodivm. ↑
Enunciado FPPC nº 166. (art. 926) A aplicação dos enunciados das súmulas deve ser realizada a partir dos precedentes que os formaram e dos que os aplicaram posteriormente. ↑
DIDIER, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 529. ↑
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 341. ↑
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 214. ↑
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1485. ↑
Enunciado FPPC nº 315. (art. 927). Nem todas as decisões formam precedentes vinculantes. ↑
MARINONI, loc. cit. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 455. ↑
DIDIER, loc. cit. ↑
Enunciado FPPC nº 173. (art. 927) Cada fundamento determinante adotado na decisão capaz de resolver de forma suficiente a questão jurídica induz os efeitos de precedente vinculante, nos termos do Código de Processo Civil. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 455-456. ↑
DIDIER, loc. cit. ↑
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004 p. 175. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 456. ↑
TUCCI, Ibidem, p. 175-176. ↑
Enunciado FPPC nº 318 (art. 927). Os fundamentos prescindíveis para o alcance do resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela presentes, não possuem efeito de precedente vinculante. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 458. ↑
DIDIER, loc. cit. ↑
DIDIER, loc. cit. ↑
SILVA, Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 185. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 467-474. ↑
Enunciado FPPC nº 170. (art. 927, caput) As decisões e precedentes previstos nos incisos do caput do art. 927 são vinculantes aos órgãos jurisdicionais a eles submetidos. ↑
Todos sabem que decisões do Supremo em controle concentrado são vinculantes. O efeito vinculante que todos conhecem é o efeito vinculante da coisa julgada, dos dispositivos dos julgados do Supremo em controle concentrado. E não é disso que o CPC cuida aqui. O que o CPC estabelece é que o precedente em ADI, ADC e ADPF é vinculante. Não se confunde com o conteúdo da coisa julgada e, portanto, não se refere ao dispositivo, como se verá adiante. ↑
Enunciado FPPC nº 168. (art. 927, I; art. 988, III) Os fundamentos determinantes do julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF caracterizam a ratio decidendi do precedente e possuem efeito vinculante para todos os órgãos jurisdicionais. ↑
Esse inciso não tem novidade. Apenas reforça que a súmula vinculante consagra precedente obrigatório. ↑
Esse inciso consagra a previsão de que precedentes construídos nesses incidentes – assunção de competência, resolução de demandas repetitivas e recursos extraordinário e especial repetitivos – são obrigatórios. Esses incidentes se caracterizam por organizar e reunir os argumentos favoráveis e contrários a determinada tese para formar o precedente obrigatório. Esses incidentes, ao lado do procedimento para criação de súmula vinculante, são procedimentos criados para a construção de precedentes obrigatórios, que compõem um microssistema de formação concentrada de precedentes obrigatórios. Esses quatro procedimentos se juntam aos recursos de revista repetitivos previstos na Lei nº 13.015 e formam nosso sistema de formação de precedentes obrigatórios. ↑
Por matéria infraconstitucional, entendam matéria federal. Caso seja matéria infraconstitucional estadual não será decidida pelo STJ. ↑
Enunciado FPPC nº 314. (arts. 926 e 927, I e V) As decisões judiciais devem respeitar os precedentes do Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional, e do Superior Tribunal de Justiça, em matéria infraconstitucional federal. ↑
Diferente dos outros precedentes, que são nacionais e vinculam a todos, esses precedentes vinculam os juízes daquele Tribunal. ↑
Enunciado FPPC nº 169. (art. 927) Os órgãos do Poder Judiciário devem obrigatoriamente seguir os seus próprios precedentes, sem prejuízo do disposto nos § 9º do art. 1.037 e § 4º do art. 927. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 468-469. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 477. ↑
DIDIER, loc. cit. ↑
Enunciado FPPC nº 174. (art. 1.037, §9º) A realização da distinção compete a qualquer órgão jurisdicional, independentemente da origem do precedente invocado. ↑
Enunciado FPPC nº 306. (art. 489, §1º, VI) O precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 504. ↑
TUCCI, Op. cit., p. 174. ↑
DIDIER, Op. cit., p. 504-505. ↑
Entre outros casos, na Reclamação 4.374, relator Ministro Gilmar Mendes, julgada em 18 de abril de 2013, o Supremo superou expressamente a decisão proferida no julgamento da ADI 1.232 e assentou a inconstitucionalidade do art. 20, §3º, da Lei 8.742/1993, que estabelecia o critério matemático rígido de um quarto do salário mínimo para fins de demonstração da hipossuficiência econômica necessária ao recebimento de benefício assistencial. No agravo regimental na reclamação 15.786, relator o ministro Ricardo Lewandowski, julgada em 18 de dezembro de 2013, decidiu o Tribunal pela não aplicação da Súmula Vinculante nº 10, caso a norma afastada pelo órgão fracionário seja anterior à Constituição Federal de 1988, o que configura hipótese de não recepção constitucional da norma infralegal. ↑
Vale a consulta ao caso envolvendo a Defensoria Pública do RJ – https://www.conjur.com.br/dl/amicuscuriae-irdr-dp-rj.pdf ↑
DIDIER, Ibidem, p. 486. ↑
NEVES, Op. cit., p. 1504. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 508. ↑
DIDIER, Loc. cit. ↑
Enunciado FPPC nº 320. (art. 927). Os tribunais poderão sinalizar aos jurisdicionados sobre a possibilidade de mudança de entendimento da corte, com a eventual superação ou a criação de exceções ao precedente para casos futuros. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 520. ↑
DIDIER, Ibidem, p. 486. ↑